Natalia Viana natalia@apublica.org |
Mais em esgoto que em água: certinho, já que 98,6% da população é atendida pela rede de água, mas apenas 94,7% pela rede de esgoto (não é o caso desta que vos fala, por exemplo). Uma diferença gritante em relação ao resto do pas, onde 84,1 é atendida por água na torneira mas 54,9% é atendida por coleta de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil.
Graças a quem? À Sabesp.
Eu guardo essas informações assim como guardo onde fica a reserva da Sabesp em cada bairro onde morei, sempre em um ponto bem alto, uma das coisas que aprendi com meu pai. Eu estava com ele, aliás, quando vi o título do editorial da Folha sobre a privatização: “O saneamento vence”. Olhei um tanto incrédula pro meu pai, que é leitor assíduo do jornal há mais de 40 anos e geralmente concorda com o que ele diz. Mas não nesse caso. Assim como o editorial do Globo, de mesmo teor, ler aquela peça de propaganda privatista soou como um déja vú. A defesa, em ambos os casos, é claramente ideológica. O Globo diz que “só o capital privado tem condição de captar os investimentos necessários a transformar o saneamento no Brasil” e a Folha garante que a privatização “avança no objetivo central: acelerar a universalização dos serviços.” É uma visão de mundo que não tem base na realidade, e que se liga com a criminalização da política, do SUS e do ensino público, uma visão que diz que tudo que é público é corrupto e mal gerido. Como garantir que o serviço vai melhorar, se qualquer ser humano que mora ou trabalha em um bairro não rico em São Paulo sabe que estamos sujeitos, há mais de meia década, a rodízio de água todas as noites ou às vezes ao longo do dia, sem nenhum aviso para que a gente possa pelo menos se planejar? É com o olhar de uma filha de um engenheiro hidráulico que eu tenho debatido com a nossa analista de dados Bianca Muniz como podemos levantar os dados precisamente para que os paulistanos possam entender de fato quando vai faltar água na sua torneira.
É com o olhar de uma filha de um engenheiro hidráulico que eu travei uma luta de quase um ano com a Sabesp em 2015, ano da primeira grande falta de água – maiores virão – porque descobrimos que a Sabesp fazia contratos de “demanda firme” para grandes empresas e shopping centers, vendendo água mais barata pra quem consome muito mais do que eu e você. Passei meses lutando pra conseguir esses contratos e publicar os nomes dos beneficiados. Tá tudo aqui. É o olhar de quem quer melhorar uma empresa de serviço público, mantendo-a sob o escrutínio da imprensa e dos cidadãos. Agora veja o leitor: do ponto de vista comercial, de quem vende um produto qualquer, como um pãozinho quente, faz todo sentido: a empresa garante a receita futura, e pode investir esse dinheiro. Mas pra quem vende um bem escasso, universal e público, como a água, os contratos de demanda firme são a pior ideia que alguém poderia ter. Essa é apenas uma das distorções que acontecem quando se trata um serviço público como um bem privado a ser comercializado. Como bem demonstrou uma excelente reportagem da BBC (veículo estrangeiro, diga-se), o Brasil entra na contramão do mundo todo ao privatizar a Sabesp. Entre 2000 e 2023, pelo menos 344 empresas de água e esgoto foram “remunicipalizadas”, em especial na Europa. Os motivos são bem fáceis de prever: alta nos preços e serviços inflacionados, falta de transparência e pouco investimento. “A experiência mostra repetidamente como a privatização gera aumentos de tarifas e torna a água menos acessível à maioria da população”, disse à BBC Lavinia Steinfort, do Instituto Transnacional (TNI), na Holanda, que fez o levantamento. Já não é segredo pra ninguém que estamos assistindo ao colapso climático bem antes do que imaginávamos e que as ondas de calor e a falta de água se tornarão mais e mais frequentes. E não é preciso ser tão inteligente para ver que a água vai se tornar um bem muito mais disputado, e, portanto, valioso. Neste contexto, privatizar a terceira maior companhia de água por alguns bilhões adquire toda uma outra conotação que, infelizmente, tem passado muito longe da cobertura noticiosa.
Às vezes parece que andamos, andamos, e não saímos do lugar.
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