Letícia Gouveia Analista de audiências da Agência Pública |
A matéria trouxe sete denúncias inéditas de estupro contra o Padre Bernardino dos Santos. As denunciantes afirmam terem sido vítimas do sacerdote quando crianças, romperam o medo, a indiferença e expuseram suas histórias à Pública, que teve acesso exclusivo aos detalhes da investigação policial realizada em Tiros, cidade no noroeste de Minas Gerais. Os relatos trazidos pela reportagem são de revirar o estômago. O que aconteceu na infância dessas vítimas ecoa nelas até hoje. Em entrevista à repórter Naiana Andrade, a psicanalista e especialista em traumas Rosane Trapaga, que atende às mulheres que contam terem sido vítimas do padre Bernardino e os familiares delas, explica que houve silêncio durante anos, não apenas pelo medo, mas também pelo prestígio social e religioso que ele carregava. Segundo Trapaga, como ocorre em diversos casos de abuso, o agressor se ocultava atrás de um papel social respeitável — neste caso, o de representante de Deus — para ter acesso irrestrito a crianças.
Outra reportagem publicada nesta semana mostrou o silêncio do Papa Leão 14 sobre os abusos sexuais por padres na América Latina. Ele é suspeito de acobertar casos de abusos no Peru, enquanto era cardeal. Um grupo de sobreviventes de abusos sexuais praticados por padres e lideranças católicas esteve no Vaticano para exigir respostas, durante a realização do Conclave e nos primeiros dias do pontificado de Leão 14. A ausência de dados contribui para a impunidade na América Latina e no Brasil.
Lendo esses relatos, me lembrei do Caso K. No episódio final da série de podcast que conta como Samuel Klein, o fundador da Casas Bahia, conseguiu passar décadas abusando de meninas e mulheres sem ser investigado pela polícia, questionado pela Justiça ou exposto pela imprensa, os repórteres descobriram que duas de suas vítimas, ao tentarem denunciar o que viveram, foram acusadas de extorsão e formação de quadrilha. O caso chegou à Pública depois de ter passado pelas mãos de jornalistas de outros veículos de comunicação, inclusive da chamada grande imprensa, que entenderam a gravidade da denúncia e tentaram publicar a história, mas não conseguiram. O podcast só foi possível pelo apoio dos leitores que doaram para nossa campanha de financiamento coletivo para viabilizar a produção. A série chegou a ficar entre os podcast mais ouvidos do Brasil no Spotify, ultrapassando produções que contam com muito dinheiro de patrocínio. Mas, Samuel morreu com a reputação de rei do varejo, sem nenhuma menção aos seus crimes. Bernardino só foi indiciado por estupro de vulnerável no ano passado, pelos atos cometidos contra 50 vítimas entre os anos de 1975 e 2016, e aguarda o julgamento em casa, com uso de tornozeleira eletrônica. Assédio não é um caso isolado, é um problema sistêmico, que se repete em ambientes como a política, as igrejas, as empresas e até dentro de instituições públicas. A Pública vem investigando esses padrões e revelando as conexões que sustentam o silêncio. O jornalismo independente é essencial para garantir que esses casos — muitas vezes silenciados por estruturas de poder e medo — continuem vindo à tona com responsabilidade. Sem pressão por cliques ou interesses comerciais, conseguimos abordar o tema com profundidade e proteger quem denuncia. E mais: nossas reportagens não ficam apenas na denúncia. Elas já motivaram investigações formais, embasaram projetos de lei e pautaram a pressão pública por justiça.
Essa mesma liberdade editorial nos permite investigar outros temas urgentes que também envolvem silêncio, influência e grandes interesses econômicos, como o mercado bilionário das apostas online, tema da nossa campanha de financiamento coletivo atual.
Assim como nas investigações sobre assédio, nossa apuração sobre as bets busca ir além da superfície e revelar os mecanismos que sustentam um sistema onde manipulação, poder e dinheiro circulam sem transparência. Porque quando o jornalismo é verdadeiramente independente, ele não recua diante dos poderosos — e nem diante do jogo sujo.
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